Os perigos para a saúde pública, num contexto de pandemia, mudaram o quotidiano escolar. As escolas encerraram, o regime do ensino à distância generalizou-se, o uso de plataformas tornou-se uma forma de continuar a aprender em casa, a tutela avançou com aulas na televisão. As mudanças levam a reflexões que conduzem a conclusões que condicionam decisões. No próximo ano letivo, o Governo quer que todos os alunos do ensino obrigatório tenham acesso à Internet e a equipamentos informáticos.
“Assumimos um objetivo muito claro: vamos iniciar o próximo ano letivo assegurando o acesso universal à rede e aos equipamentos a todos os alunos dos ensinos Básico e Secundário”, garantiu o primeiro-ministro numa entrevista à agência Lusa. António Costa concretiza algumas ideias. “É muito mais do que ter um computador ou um tablet. É ter isso e possuir acesso garantido à rede em condições de igualdade em todo o território nacional e em todos os contextos familiares, assim como as ferramentas pedagógicas adequadas para se poder trabalhar plenamente em qualquer circunstância com essas ferramentas digitais”.
O investimento será avultado nesta passagem mais assumida e prioritária para o mundo digital. António Costa enfrenta a realidade. “As desigualdades são muito mais persistentes do que aquilo que muitas vezes se pensa e, quando elas se diluem na mesma sala de aula, elas acentuam-se quando cada um vai para as suas casas. Ou por insuficiência da infraestrutura de comunicação, ou por falta de equipamentos, ou por diferentes tipos de habitação, ou, ainda, por diferentes contextos familiares, essas desigualdades tornam-se ainda mais visíveis”. O Governo quer evitar situações de disrupção por falta de acesso à tecnologia.
António Costa reconhece que esta crise sanitária mostrou a outra face da moeda. Alunos sem computadores, casas sem acesso à Internet, desconhecimento de plataformas. Mesmo assim, a comunidade educativa esforçou-se e deu o seu melhor, de uma maneira geral. “De facto, a necessidade aguçou o engenho e em duas semanas avançou-se mais na literacia digital do que seguramente se teria avançado em muitos anos de uma ação programada. Temos de aproveitar este impulso para cumprir aquilo que era uma das grandes metas do programa do Governo: acelerar a transição para a sociedade digital”, referiu na entrevista dada à Lusa.
Feedbacks pedagógicos específicos
Na Madeira, todos os alunos do 5.º ano das escolas públicas já têm tablets, com apoio da Samsung, e acesso aos manuais digitais de todas as disciplinas e a um conjunto de funcionalidades e recursos interativos exclusivos da Escola Virtual, plataforma de e-learning da Porto Editora. A experiência piloto começou com uma turma no último trimestre do ano letivo passado. Neste momento, abrange 24 escolas, 100 turmas, 2200 alunos.
O projeto terá continuidade nos próximos anos letivos através da atribuição de licenças de acesso a manuais escolares digitais e de tablets aos alunos que se matricularem no 5.º ano. Os estudantes que forem transitando de ano manterão o uso dos tablets atribuídos e continuarão a ter acesso aos manuais escolares digitais do ano para o qual progrediram. O projeto estará em vigor até ao ano letivo 2023/2024 e todos os professores envolvidos têm ao seu dispor conteúdos de todas as disciplinas do pré-escolar ao 12.º ano, disponíveis na Escola Virtual.
As primeiras reações são de satisfação. “O projeto está a decorrer de forma muito positiva, em função dos esforços organizativos das escolas, dos percursos formativos percorridos pelos docentes e da forte disponibilidade dos alunos (“nativos digitais”) para usarem as ferramentas digitais de modo apropriado e profícuo para as suas aprendizagens”, refere Jorge Carvalho, secretário Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da Madeira.
A análise global e mais completa só poderá feita de forma consistente a partir do final do ano letivo. De qualquer modo, há sinais positivos. A realização de tarefas e trabalhos escolares em casa apresenta uma taxa muito próxima dos 100%. “A generalidade dos alunos alcançou e/ou consolidou procedimentos adequados no acesso a conteúdos disponíveis na Internet. Os cuidados com o ‘material escolar’ são elevadíssimos, tendo-se registado o extravio de apenas um tablet. Os episódios de indisciplina em sala de aula diminuíram drasticamente, ao mesmo tempo que a participação nas aulas e a realização de trabalhos nas mesmas é muito satisfatória”, revela o secretário regional.
“A disponibilização dos conteúdos e transmissão de conhecimentos tornaram-se mais efetivas, sendo oferecidas aos alunos sob formas mais diversas e completas do que se dependessem da preparação de cada docente. Por outro lado, há um acompanhamento quase em tempo real das aquisições dos alunos, pois os docentes podem visualizar a realização dos seus trabalhos no momento da execução dos mesmos, desencadeando feedbacks pedagógicos específicos, adequados aos seus destinatários”, adianta o responsável que acrescenta o efeito positivo na saúde dos alunos, “agora dispensados de carregar diariamente mochilas com peso superior ao adequado para as suas idades e nível de desenvolvimento esquelético-muscular”.
Há ainda outros fatores a ter em conta como, sustenta, “o alinhamento do projeto com as propostas de desmaterialização, transversais à sociedade, bem como a adequação das formas de ‘trabalho’ destes alunos às realidades que certamente encontrarão na sua futura vida profissional”.
A experiência poderia ser replicada no Continente? “A implementação de projetos desta ou de outra natureza no Continente depende das decisões do Governo Central”, responde Jorge Carvalho. “Da nossa parte, tivemos, temos e teremos sempre toda a disponibilidade e todo o interesse em cooperarmos com as restantes partes do país, seja para a réplica de projetos nossos, seja para acolhermos projetos do Ministério da Educação ou da Secretaria Regional de Educação da Região Autónoma dos Açores”.
“Este posicionamento tem uma única razão de ser: o progresso da Educação em Portugal é uma missão comum, focada na preparação das sucessivas gerações para alcançarem competências que lhes permita prosseguir os seus sonhos de realização pessoal e profissional, condição indispensável para contribuírem para o desenvolvimento do país”, sublinha.
Vontades, expetativas, ambições
A Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP) está satisfeita com o que o primeiro-ministro promete, disponível para o que for necessário, sempre do lado das soluções, sabe que os recursos não aparecem de um dia para o outro, e espera que não se cometam os mesmos erros do “Magalhães”, computadores que foram oferecidos aos alunos do 1.º e 2.º Ciclos, no âmbito do programa e-escolinha, há algum tempo. “É preciso saber trabalhar com os equipamentos. Cada um tem a responsabilidade de os utilizar devidamente”, refere Jorge Ascenção, presidente da CONFAP.
“A heterogeneidade de quereres, vontades, expetativas, e ambições, é muito grande”, comenta. As sinergias e as parcerias são importantes para que a comunidade educativa tenha acesso às novas tecnologias. “A única via possível é esse trabalho em rede, esse trabalho em comunidade”. A segurança na Internet é também uma questão essencial e que deve ser protegida. Para Jorge Ascenção, os tempos de agora obrigam a ponderar vários assuntos. É altura de repensar o modelo de ensino, a forma como se ensina e se motiva os alunos, o que, aliás, tem sido uma das preocupações da CONFAP. É preciso, segundo a CONFAP, pensar em novos modelos.
Tito de Morais, fundador do projeto MiudosSegurosNa.Net, que ajuda famílias, escolas e comunidades a promover a utilização responsável e segura das novas tecnologias de informação e comunicação por parte de crianças e jovens, vê nas declarações e promessas do primeiro-ministro o cumprimento de direitos básicos consagrados constitucionalmente, bem como na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. “O acesso universal e gratuito à Internet é um direito humano básico”.
Na sua opinião, é da mais elementar justiça que todos tenham acesso à Internet. “Por outro lado, estando os jovens privados do ensino presencial e sem dispositivos (computadores, tablets ou smartphones) e sem serviços de acesso à Internet, podemos estar perante uma violação básica do direito à educação consagrado na Constituição Portuguesa (artigo 73.º), na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 14.º) e no artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Tito de Morais lembra que o artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos considera que todos têm o direito à liberdade de expressão e opinião, nomeadamente à liberdade de procurar, receber e transmitir informação e ideias através de qualquer meio e independentemente das fronteiras. “Acresce que, no seu artigo 27.º, a Declaração Universal dos Direitos Humanos refere que todos têm o direito de participar livremente na vida cultural da comunidade, apreciar as artes e partilhar o progresso científico e os seus benefícios”, repara.
Sobre as plataformas e ajudas que têm surgido para facilitar o ensino à distância, Tito de Morais tem um sentimento ambivalente. Por um lado, saúda o esforço e contribuições para facilitar a vida das pessoas neste contexto, por outro, receia que a passagem do ensino presencial para o ensino online, de um dia para o outro, possa ser precipitada por não se acautelar a segurança e a privacidade online. “É importante que ao começarmos a usar uma dada plataforma, nos familiarizemos com as suas funcionalidades ao nível da segurança e da proteção da privacidade. Os inúmeros alertas e incidentes noticiados relativamente ao uso de determinadas plataformas, mostra que nem sempre tomámos essas cautelas”.
Por: Sara R. Oliveira
Fonte: https://www.educare.pt/noticias/noticia/ver/?id=168066&langid=1